terça-feira, 28 de abril de 2015

JOÃO E JOANA
Aquele João
Não tinha assinalação.
Era sem sinal particular, fosse no corpo, fosse na alma.
Nem feito de armas nem de brasões executou que o assinalassem. Nascera do humus e carregava a sua genérica desimportância nas plagas do alem daquela serra, pinguço de rotina, comedor de cobra em tempo de apertura que era de sol e lua.
Sempre enganchado na velha besta por nome Joana, magra
»
e trotona, bicho desarrumado já sem ânimo de melhorar a marcha, Sem Terra, por nome João, riscava aquelas estradas de venda em venda, corno toco de enxurrada, sempre mais na intenção de ficar do que da ir.
Ir ou ficar, porém, tanto valia para ele. A tal conclusão chegara por via reflexiva, como segue. Não era redondo o mundo? Era redondo o mundo e se redondo era o mundo am qualquer lugar em que ele , João, estivesse, ele era o centro do mundo redondo. Logo, ir ou ficar, no mesmo dava e, por isso mesmo, ele, João, montado na besta Joana ou sentado na venda do Chico, entendia que tanto fazia ir como ficar.
  • Ta bem, tá bem, disse o próprio Chico Santo, por nome Francisco das Santos, tá bem. Mas já é quasi meia noite, to cum sono a vô fachá. Cai na estrada e té manhã.

João foi.
A besta Joana, velha e submissa, largou-se a passo, de rédea frouxa, com João em cima, ferrado no santantônio. A besta ia tranqüila, no desfrute da intimidade com aqueles velhos caminhos, silenciosos caminhos e imperturbáveis, por onde agora deslizava a sombra daquela desimponência equestre, indefinida à luz do quarto crescente tristão.
Grilos psicotrópicos ritmavam sonolências marginais, amoi- tados de um lado e du outro do caminho quase trilhoso. Joana, senhora do destino de João, aproveitava a vigília para dar bocadas aqui e ali, no capim ralo que viera, imprudente, ocupar o caminho dos homens; e das bestas.
0 caminho caminhava afastando a vegetação minguada, subindo e descendo em curvas sem surpresas para a besta Joana.
La vem o córrego e o mata-burro desmoralizado pela habilidade de Joana! E já passou ... La vem a casa da tia Mulata. E já passou ... Lá vem ... e já passou ...
João Sem Terra, muito homem e pouco varão, balançava no lombo joanino entre os dois jacás vazios dos frangos de roça que viajaram de dia para as panelas modestas do povoado: Joana para um lado, João para o outro, Joana para um lado, João para o outro ...
A voz do moitibó soou agourenta, mas sem resultado prático, uma vez que a besta Joana não ligava pra noitibó e o companheiro João,
depois da uma tarde de talagadas da "Toma o Tombo", também não ligava pra azar de qualquer espécie, além de nunca ter lido o poeta do caçador. Era, mesmo, muito analfabeto.
Os boitatás o outras assombrações de plantão, provavelmente reconheceram Joana e decidiram-se deixar quietos, guardando maldades
para viajante monos experiente. E João e Joana lá se iam a passo frouxo , sem pressa de chegar.
Foi aí que aconteceu um acontecimento estranho demais, mas
demais mesmo.
0 luar, muito fraco, espalhava um pó branco pelas lonjuras. Ou fosse que enganadas pelo luar, pois que pó é coisa de seu ofício , ou fosse que atraídas pelo apelido medieval de João Sem Terra, caboclo do Apiajá, muito homem e pouco varão, o fato é que três feiticeiras, expatriadas das Escócia, não deixaram por menos: abriram o coro, declamando:
Somos muito irmãs, as três feiticeiras,
Da terra e do mar fatais mensageiras.
E dadas as mãos giramos assim:
Três voltas por ti, três voltas por mim;
Ao dar outras três só nove haverá.
Silêncio! 0 encanto pronto estará.
E logo depois:
0 bonito é feio, o feio é bonito.
A besta Joana, acostumada com as assombrações da terra, nem
ela sabe como, entendeu o miado e o coachar da bruxas e antes de disparar no pavor daquela intrujice nórdica, ali naquele ar noturno carregado de trópico, estancou e estremeceu debaixo das virilhas do companheiro João.
Com a parada brusca João Sem Terra oscilou da anca ao pescoço e vice-versa, procurando, por instinto, o ponto ideal do equilíbrio, e perdido centro de gravidade.
Orelha em pé, hirta e arrepiada, rabo teso, indecisa entre o dever a cumprir, seja, o do manter a incolumidade física do sou dono, e o direito a exercer, seja, o do sumir no mundo sem respeitar córrego ou cerca, Joana espertou-se quando ouviu João, dentre as brumas da "Toma o Tombo", resmungar desatento às circunstâncias:
- Esta é boa, esta é muito boa! 0 bonito é feio e o feio é bonito, hum? Quer dizer que:
A ordi é a desordi
A desordi é a ordi,
Tanto faz i ou ficá   Tanto faz ficá ou i!
Dito assim, naquele tom imitativo, pensou Joana, aquilo era uma resposta, era um desafio, era uma aceitação da presença exótica, era um arriscar-se aos efeitos do feitiço, era um topar a parada, era um arrancar da peixeira, era um bater de esporas, era um enristar de lança, era um preparar o elmo, era um esgravitar-se! E aquilo podia não acabar bem.
Vento forte balançou a copa de uma ingazeira por ali solitária e as bruxas se dissolveram no ar. Mas, ao que tudo indica, não foram a Macbeth. Ficaram nas redondezas, dançando invisíveis, fazendo das suas, tanto assim que a besta Joana e o muito homem João, começaram a sentir um calafrio esquisito dentro da normalidade da noite e, de repente, viram-se falando um com o outro e se entendendo na lingua    de Camões e em outra de uso do poeta.
O noitibó tornou a cantar, funesto, fúnebre, nefasto a funerário.
Joana, quando viu, tinha perdido a cauda, sinal certo de que a força da bruxaria estava sobre ela. João, desacompanhado de escudeiro, arrumava uma armadura, reluzente ao luar desmaiado, encostando-se ao barranco do latifúndio do Cel. Bernardo, assim feito cavaleiro, armado de bodoque da goiabeira e lança de palmito. E logo ajeitado, endireitou para Joana, trágico e solene, a comandar, já bem menos analfabeto.
 - À Baratária! À Baratária! Por todos os deusas e por todos os diabos, à Baratária!
Ao que a besta Joana, ainda mal apercebida das intenções do cavaleiro, engerizou:
 Com sua licença, meu senhor! Nunca! Não vou de Rocinante, desfalcada de meu rabo, a por em ridículo toda uma estirpe de jericos dignos, ascéticos, frugais, morigerados, modestos, que ajudaram a fazer estes sertões, com a clara consciência de suas realidades, sem fantasias derramadas nem utopias. Alguma secreta voz me diz, senhor, que devo honrar essas tradições, sem ambição de enriquecer meu currículo, sem me candidatar a estátua ou a capa de revista. Perdão, senhor, se empaco, que isso é de minha natureza, mas recuso, ainda que me excomungue a altissonância de Vossa Mercê..
João Sem Terra hesitou. O sortilégio, nacionalizado nas complicações de sua etnia, vacilava, diante da resistência do quadrúpede, entre o fidalgo andaluz e o Oxó dos Encantados. Finalmente, em tom conciliatório, mais de proposta do que castrense, assim falou:
 Bueno! Desistir da Baratária, não desisto. Não abro mão dessas velhas aspirações também tradicionais na corrente de nosso sangue, o acalentado sonho da beatitude terrena, num paraíso insular inacessível à desordem do mundo. Mas, por agora, em substituição transitória, vamos então ao País das Esmeraldas. Â Bandeira, pois, a Bandeira, que o tampo urge!
Olhar levantado aos céus estrelados, o porte a Péricles tomando, declamou, impressionante a citatório, mas não plagiário:
- Sigamos a clara procissão destas bandeiras d'oiro! Sigamos antes que o Cel. Bernardo acorde, no fundo de seu latifúndio! Sigamos, pois quero trazer as mãos faiscando de preciosíssimas gemas e atirar na varanda da Casa d*Avila, o preço do meu resgate, isto é, a minha conta rabilonga na venda do Chico Santo! Sigamos que minha lança tem fome de ventres fofos! Rasgarei com os dantes as tripas do Cel. Bernardo e de todos os coronéis do roça que reinam nestes territórios d'aquem e d’além serra! E lhos entupirei as narinas com o conteúdo de seus intestinos para que se afoguem naquilo em que sempre viveram! Arrasaremos as Casas Grandes que toparmos em nossa marcha e onde tu pisares - oh Joana! - nunca mais crescera capim e o mandacaru morrerá de sede até onde alcançar o ruído de teus cascos!
Dizendo tais sentenças, terrível e imponente, no gesto e na chama que lhe incendiava o olhar, João Sem Terra estaria muito bem sobre um pedestal, na entrada de um porto qualquer, aí pelos sete mares da terra, símbolo extraordinário das aspirações continentais!
Estaria, mas não estava e Joana, entre receosa e admirativa, contemplava sou amo e senhor, caboclo do Apiajá, ali imóvel, como se em bronze esculpido estivesse, já memorializado pelos pósteros, afrontando os donos do mundo, os senhores da Paz o da Guerra, da miséria a da abundância, dos invernos a das secas, das respectivas campanhas a dos açudes respectivos! Não demorou muito, porém, o quadro fascinante.
João, de repente, dosbronzeou-se e apesar do peso da armadura, montou de salto. Joana, estimulada pelas rosetas que lhe rosavam a barrigueira, rendeu-se ao fato consumado; de qualquer forma, concluiu, melhor às esmeraldas que à Baratária. Aliviada dos jacás, como convinha à dignidade da missão e à evidente nobreza do cavaleiro, viu-se arreios do prata, naturalmente por efeito do feitiço, que de sua natureza não seria.
Lá se foram, assim, os dois, entre pastos assamambaiados, adormecidos e desertos, agora em trote vivo, arrebicados e esperançosos. Um bacurau vadio desaninhou-se da beira do caminho, espantado com tanta solenidade e aprumo bélico, e sumiu por trás de uma moita de xique-xique, prudente e defensivo.
Joana, a certa altura do trote, teve uma lembrança e logo a expressou, muito desinibida:
- Que cantaremos, Senhor, que cantaremos? Nestes momentos historicamente fecundos, senhor, os homens costumam cantar sempre alguma canção ou hino ou o que seja. Eles cantam quando vão â guerra, cantam quando conseguem voltar dela. Durante, cantam para esquece-la. Cantam quando casam; quando morrem, os outros cantam pelo morto. Quando nascem, também, cantam. Alegres, tristes, racordativos ou futurosos, cantam! Parece-me que deveríamos nós, também, cantar, senhor, para brindarmos a esta guerra santa, quando partimos am busca dos tesouros de nossa terra comum. Como despertar e trazer para o nosso partido, os Fornão Dias, os Manoel Prato, os Jorge Velho, os Tavares, os Borba Gato, todos memomorabilíssimos violadores de
sertões e plantadores de cidades, catadores de ouro e pedraria, se não cantarmos, senhor? Eles estão adormecidos no passado e não é costume dessas contemporâneas gerações, tão emprenhadas de futuro, requisitá-los no seu repouso ... Entendo que deva haver cantoria, senhor, para o bem geral da expedição.
João Sem Terra ouviu, refletiu e considerou a sugestão, já agora com prudências de chefe. É que o canto poderia despertar, juntamente com as coortes de violadores de sertões e de tratados, a capangagem do Cel. Bernardo. E, entre a animosa recordação daquelas vidas heróicas e o risco da presença real dos cabras assalariados do coronel, vacilava a decisão.
             Nem tão desvairado pela “Toma o Tombo" estava João, nem tão dominado pela força do sortilégio que não lhe falassem, do sangue e do íntimo, as vozes da hereditária matreirice, recurso tradicional de sua fraqueza. Por outro lado reconhecia que não havia cometimento do tipo daquele que não se fizesse acompanhar de alguma exterioridade indispensável a alimentar a convicção no êxito final, a estimular os dúbios, a abafar murmúrio dos pessimistas, a esconder ou disfarçar as indecisões dos chefes ...
Então, balançando entre a afoiteza e o risco da afoiteza , decidiu correr o risco:
Pois que seja, bradou!
E mais empolgado do que convinha:
  • Que seja! Cantemos! Nosso canto será clarinada, será  convocação, será arrancada! Cantemos, Joana, a Marselhesa! A Marselhesa, flamante de heroismo e gloria, pela Liberdade, pelo Pão e pela Terra!
Ergueu a lança de palmito e já ia atacar o "Allons ..." quando Joana ousou algumas ponderações, quiçá judiciosas, que iriam esfriar a incandescência do entusiasmo patronal:
Peço vênia, Senhor, peço vênia por um momento. Este hino nada me transmite de especial, senhor, sinto dizê-lo. Admito que entre alferes e poetas, alfaiates e seminaristas dos idos inconfidentes das Gerias às leoninas margens do Capibaribe, essas francofilias incendiassem os ânimos dos derrubadores de tronos e dinastias. Mas agora, nesta hora mesma do século, com toda franqueza, meu amo e senhor, daria preferência, se a tanto me facultasse o liberalismo de suas convicções, a alguma coisa nossa, alguma coisa que tenha brotado de sísmicas inspirações telúricas. Algo que fale em liberdade, por certo, em caminhos, por certo, mas sem essas marcialidades de dias de glória etc. e estandartes de sangue, daqueles carbonários de Marselha. Enfim, como se usa dizer, alguma coisa com cheiro de nossa terra, com…
Foi aí que João se mostrou ouriçado. Já cedera à besta na questão do Baratária e, ciumento, da chefia pensou: se cedesse outra vez acabaria perdendo o controle da situação. Conviria cortar a saliência da besta enquanto fosse tempo. Daí puxou um pigarro forte, como convém a uma autoridade que se reafirma e torcendo a intenção da besta, falou grosso e agressivo:
  • Que diabo de cheiro da terra é este, D. Joana?! Que estranhas palavras essas! Então acha que vou cantar alguma coisa que possa cheirar à urina do Cel. Bernardo e à murrinha de seus cabras safados? Tu imaginas que eu tenha, tive, teria ou terei qualquer besteira com o latifúndio do coronel? Que diabo de insinuação é essa, D. Joana?! De onde te veio essa ideia de tão mau caráter? Orá, esta é das melhores, D. Joana! Eu, cantar coisas cheirando à terra do Cel. Bernardo! Eu, João Sem Terra!
Joana foi compreensiva, paciente e digna:
- Meu amo e senhor vai me permitir dizer que não me entendeu. Não seria esta besta cujos ancestrais suaram sangue, suor e fome-eis que lagrimas não tinham - nos varais daquelas crudelíssimas moendas que nos deram do mundo uma idéia de que fosse mais redondo e chato do que este que nos impuseram, não seria eu quem iria abanar o rabo, como qualquer cadela vadia, às barbas e às terras do coronel. Refiro-me, senhor, usando a expressão "cheiro de terra", aos sentimentos mais autenticamente nossos, àqueles que vêm de nossa alma sertaneja, sem essas espaventações internacionais produzidas em velhas matrizes histórica instaladas nos porões do tempo, descoradas ao sol da América! Sou coerente, senhor! Opuz embargos à arremetida rumo à Baratária - que foi idéia de remotas celtiberidades inculcada no seu entusiasmo pelo tempestuoso Ariel que nesta noite está a destelhar nosso juízo; mas aceitei com especial alegria, que trotássemos e até galopássemos em busca das esmeraldas que são um sonho nosso, uma acalentada esperança coletiva a conviver, teimosa e comprometedoramante, com as matematizações sistemáticas de nossa nascente tecnocracia. As esmeraldas são nossas, meu amo e senhor, o sonho á nosso, a esperança é nossa. E nesse contexto passivo, nossa é a terra, ainda que o Cel. Bernardo diga o contrário e a sua capangagem o confirme. Eis aí o sentido de minhas palavras, injustamente interpretadas por meu amo e senhor. Nessas lidas em prol da justiça, que ora encetamos, não há lugar para injustiças, meu amo, que mal assim a iniciaríamos. E o que tem mau começo, não tem bom fim.
Calou-se a voz explicativa da beata Joana. 0 silêncio da noite morna recolheu-a. Caiu na terra como fruto maduro.
 João, meio ferido pelo discurso ponderado e respeitosamente crítico, considerou a situação como era do seu dever de líder e, depois de alguns metros de trote vivo, mandou secarrão, raivoso por ceder:
  • Vá! Dize lá a tua sugestão, D. Joana. Que á que pode substituir com eficiência a Marselhesa tirado do nosso embornal?

- Meu amo - respondeu Joana com jeito humilde - creio que ficaria bem, afinaria melhor com a situação, se cantássemos algo assim entre "Aquarela do Brasil", "Viola Enluarada", "Tudo é Brasil" ... que aí tem liberdade, tem caminho, tem ufanismo, tem descendentes de tupi, enfim, são cantos que dão para alentar e lavam, de suplemento, uma vantagem: a cabrada do coronel não estranha! Pensa que somos cantadores, que vamos em desafio, líricos jograis dessas paragens e, com isso, passamos nossas armas sob seus focinhos para além do feudo bernardino. Vadearemos águas canastrenses, passaremos à margem esquerda e afundaremos naqueles territórios da velha comarca que a cólera Imperial desplantou do chão do Caneca. De lá, rumo oeste, assim evitando chapadoões esgotados e modorrentas infletiremos para o planalto, já cursando rotas bandeirantes, sempre ao som dessas mandolinates caboclas. Não estaria bam?
De todos estes bam aprumados argumentos Joao Sem Terra considerou
 a principal vantagem suplementar, como era do seu caráter. Realmente , começar a coisa com um passa-moleque nos cabras do coronel, era um começar brilhante, com sabor de vitória antecipada! Arrombar a vigilância da jagunçada no puro canto seria inexcedivelmente gostoso, estupendamente grato aos seus rancores centenários ... Mais do que estripar o coronel era fazer o homem de peteca, era azucriná-lo, era lambusar-lhe a cara de mel  e soltar um enxame de abelhas africanas por cima dele! Seria, enfim, uma humilhante vingança a resgatar gerações de humilhados de antes de após a comovente penada isabelina. Sim! Até que a besta Joana tinha idéias aproveitáveis e, resguardadas as suas próprias prerrogativas de liderança da expedição, D. Joana ia bem como assessora, conselheira e técnica em generalidades.
- D. Joana - disse, por fim - está deferida a sua pretensão. Comece o canto que de memória não sou tão bom quanto sou de fantasia.
Joana, apesar da autoria da sugestão, não sabia perfeitamente as letras e as músicas sugeridas. Melhor que Aquarela e Tudo é Brasil, ufanista, mística e lírica, empacava na Viola donde só conseguira reter o Liberdade, Liberdade. Assim mesmo, ordem dada, ordem cumprida porque não poderia haver bandeira sem disciplina.
0 canto se espalhou na quasi madrugada sertaneja, esparramando-se O canto se espalhou na quase madrugada sertaneja, esparramando-se pelos telhados, desfiando-se pelas cercas, afinando-se pelos matos. A noite mansa ondulou na Viola Enluarada e foi bater como vaga suave na casa do coronel, ancorada no bojo do sertão.
A cabrada que folgava o corpo na varanda larga, remexeu-se resmungona, sonolentamente mal humorada, mas, confiante na vigília d'armas do plantão da hora, voltou ao ronco ritmado, aos sonhos encharcados de cachaça, sangue e sarro.
Com a cantata grilos trinadores silenciaram, corujas professorais afiaram o olhar de estilete, sapos recolheram eructações soluçantes.
E a bandeira passou, cantando coisas de amor à gente e à terra, matreira, astuciosa, carregadinha de esperança, em demanda do futuro, lá muito além da fronteira ...
Assim corridas umas boas léguas trovejadas e cantadas, todas dentro, ainda, das divisas do Cel. Bernardo, Joana foi iluminada por outro momento de lúcido intervalo ao pressentir aproximar-se o desamparado canavial da fazenda. Por instantes regressou daqueles futuros em que a meteram as bruxas de Macbeth, chamada pela voz do estômago, apelo irresistível provocado pela abstinência de tarde inteira a meia noitada esquecida no pau de amarrar água da venda do Chico Santo.
No que o pressentiu rompeu por dentro dela, disposta desforrar se do jejum naquela doçura muito mais a seu alcance do que a mirífica serra esmeraldina, meta final da arrancada expedicionária.
O repentino da manobra pegou João desprevenido de tal jeito que, quando deu de sí, estava fora da sela, se bem que de pé, armas apresentadas, cabeça erguida, menos assustado que espevitado. Todavia, logo que viu envolvido pela farfalhante causa, não tão remota, daqueles delírios, na gênese mesma da renomada "Toma o Tombo", sofreu, de curto "modo , também ale, do mesmo processo regressivo  que  atingira Joana. Despojado daquelas grandezas, descascado da armadura, só mesmo pela força do sortilégio não se devolveu, de pronto, ao pedaço de chão do Cel. Bernardo, ao tamborete da venda de Chico Canto, ao condomínio do rancho de sopapo e sapé desfrutado   em parceria com os chupões da Dr. Chagas, enfim, àquelas orteguianas circunstâncias do eu dele, incluídos aí os jacás de galináceos esvanecidos, pela bruxaria, do lombo da besta.
0 certo é que o ímpeto de ambos, o quase vôo de ícaro am que se iam matando, escaldou  menos. João acocorou-se à espera da um vento favorável que, por certo, as bruxas lhe dariam, para prosseguir na rota bruscamente interrompida. A besta Joana, desimpedida da cauda, assentou-se sobre o traseiro e, meio súcuba  daqueles seres feitos de ar, tentava refletir, som muito êxito.
Ao tempo em que alimentava a tentação de se ver alforriada no fim da expedição libertadora, receava pelos arroubos. Ir-se mundo à fora, sam outra segurança que não a sorte, abandonando as paragens onde imperava, sobranceiro e incontestável, o Cel. Bernardo, abandonando, assim, com
a castelania, a proteção, não seria expor-se, por vã cobiça, a parecer nos ermos de fonte e sede, ou a cair nas unhas de mais cruel  a desalmado castelão? Por acaso não estaria forrada de razões a conformada experiência da velha siracusana?
0 temor do trocar de tirano domesticava os impulsos libertários da basta Joana. Espora por espora a verdade é que das que lhe ralavam a barriga ja lhes conhecia o tamanho das rosetas ... Por sobre tais medos, justificados, a cana suculenta funcionava como injeções de prudência. Aliás, era hora do reconhecer, refletia, toda aquela suculência não lhe custam um tostão do binômio capital a trabalho, variável importante para seus cálculos, no momento.
Suas preocupações, afinal, não aram apenas de natureza pragmática. Havia que temperá-las com um mínimo da ótica e aí é que entravam suas justiceiras reflexões no que diziam com o julgamento do latifúndio, especificamente com os insumos aplicado no canavial. 0 coronel tinha lá suas crueldades, sem dúvida, mas o tamanhão daquelas paragens, o sem limite daqueles campos, até que adoçava a sua amargura, arredondava as suas arestas, acariciava as suas asperezas. Bom pensando aqueles ódios do cavaleiro mais pareciam coisa importada, veneno das bruxas que vierem de fora. Não lhe agradava transformar a expedição num açougue ambulante, naquela estrumeira sangrenta das intenções de João. Pagava pela briga se fosse preciso, mas tinha lá suas Idéias a queria vê-las expostas.
Animou-se, pois, cautelosa, a rompeu o silêncio:
- Meu amo e senhor, tenho procurado colocar ordem nas minhas idéias. Daqui a mais algumas léguas estaremos navegando fora dos domínios do Senhor da Vira-Bosta e Calangopólis. Na oportunidade parece-me  que devemos tar acertado alguns pontos para o futuro estado am que ingressaremos após as esmeraldas. Estou flutuando, ainda, numa dúvida: não sei se vamos a uma empreitada revolucionária, dessas da mudar as estruturas, a começar pela agrária, ou se esta arremetida é problema só nosso, sem conotações sociais, uma questão particular, se bem me explico, entre nós e o
Cel. Bernardo. A solução de tal preliminar me parece importante sob o ponto de vista metodológico  o digo com certo constrangimento porque, afinal, tais cogitações pertencera muito mais à sua natureza racional, meu amo, do que à minha irracionalidade. Mas o fato á que falamos, nesta esquisitíssima noite, sob efeito de sortilégio ainda mais esquisito e, então , acontecem coisa como essa, mais esquisita que as anteriores, esquisitíssimas, o que explica as minhas inconveniências, se houver. Na primeira hipótese - a revolucionária ~ sera de bom tom, senão de bom aviso, fixarmos os princípios fundamentais duma filosofia do poder, uma ética de governo, se possível ou desejável e refletir sobre o que fazer quando, além das rédeas do meu freio bridão, tiverem suas ungidas mãos que toma as do mando geral na jurisdição fundiária que adquira cora as esmeraldas. Será importante saber como lidaremos com as almas que estiveram sob império de suas leis, senhor, ou de sua vontade, meu amo. São moedas preciosas, meu senhor, moedas espirituais do reino de Deus, como as chamou num conto Graciano, cercadas de intocáveis direitos sempre proclamados solenemente, por nações, congressos, declarações pluri, multi e internacionais... Deveremos ou não expressar nossas convicções a respeito, eis a questão prévia que proporia. Pesar bem as vantagens e desvantagens, imediatas ou remotas, entre Savanarola a o Secretario de Venza, parece-me coisa inteligente. Afinal, é importante aproveitar a experiência alheia porque a própria pode nos valer pouco, eis que nos vem no fim da vida ...
Sabe meu amo e senhor dos efeitos que o poder exerce sobre os homens. Muito se tem dito sobre isso, de Confúcio a seu discípulo Mêncio, da tragédia grega à sabedoria popular. Não há sofá de psiquiatra que substitua um bom tapete palaciano na eficiência em revelar caracteres, temperamentos, complexos, fobias, frustrações assim como acrisoladas virtudes, antes ignoradas, por escondidas, nas criptas mais encapsuladas da alma humana mas logo desabrochadas sob a magia da autoridade e apreendias e mui justamente proclamadas pela perspicácia dos áulicos. E ainda que o injustiçado Bocage tenha cantado em versos inesquecíveis o sacrifício, a chateação - com perdão pela vulgaridade - os incômodos o desassossego dos que habitam tais vestíbulos do inferno e, por outro lado, a paz dos simples que desconhecem aqueles círculos atapetados, é espantoso observar-se o açodamento com que os que estão de fora buscam a auto-flagelação no forçar a entrada e os que estão de dentro desenvolvem uma pertinaz tendência masoquista que os estimula a permanecer lá! São mistérios, meu amo, por natureza impenetráveis, que levaram este insondável Shakspaare a colocar nas bocas de Lear e Kent este diálogo que peço permissão para citar:

" Lear ... Que queres ?
Kent - Servir
Lear - A quem?
Kent - A vós.
Lear - E me conheces, amigo?
Kent - Não, meu senhor; mas tendes na vossa pessoa um
quê que me da vontade de vos chamar meu amo.
Lear - Que coisa é essa?
Kent - A autoridade.”
            Ora, mau amo e senhor, manda a minha equina prudência, mais que minha nenhuma erudição, que eu me prepare para as novas circunstâncias em qua se desenvolverão as nossas relações. Sei que, nestes particulares, muita importância se dá ao tratamento adequado, aos protocolos, as precedências, ao conjunto, enfim, quase litúrgico, dos cerimoniais do poder. Não quero infringir, por simpleza, tais regras. No banquete, prefiro o último lugar, segundo o preceito evangélico, uma vez que, assim, qualquer aceno do anfitrião será sempre uma grata perspectiva ascensional e nunca um desagradável "chaga pra lá" de cotovelos e cascos mais vigorosos. Todavia não desejo que esta simplicidade seja mal interpretada como sendo desprezo pelo esplendor glorioso da autoridade e, por isso, faço consulta sobre o uso dos vocativos com que deverei me dirigir a meu senhor após a vitória da nossa causa, se a causa for o caso. Será um primeiro passo para que o diálogo seja respeitoso , ordeiro e, se ordeiro, frutífero ... Não sei se o chamarei Vossa Majestade, Vossa Alteza, Vossa Excelência, Vossa Magnificência, Imperador , Czar, Divino Cesar, Eminência, Papa Doc II, Fuehrer, Duce, Camarada Presidente, Chefão ... Não sei se devo fazer acompanhar tais invocações dos expressivos o sempre mui justos adjetivos que circundam as nobilíssimas testas dos ungidos por tais designações, como sejam, El Supremo, El Campeador, 0 Libertador, o Belo, o Magnífico, o excelso e, até com licença do meu agouro, o Breve, que se breve foi, faz-se de magna geração; Grande Líder, Pai dos Pobres, Pai dos Povos, Sereníssimo, Sapientíssimo, Perfeitíssimo, Guia Emérito, Justíssimo, Condestável e outras de igual altissonância que, no momento, não me ocorrem, mas que ficam fazendo parte integrante dessas sugestões. Também não sei se devo combiná-los, se devo usá-los todos de uma vez, se devo proceder à escolha segundo a oportunidade, deixando, porém, desde já, expresso que cada um ou todos, em conjunto, estarão muito aquém dos méritos do meu amo e senhor, depois das esmeraldas e do resgate conseqüente de sua dívida à venda de Chico Santo. Ocorre-me, outrossim, que poderia ...
AÍ a besta Joana estancou a enxurrada verbal. Suas orelhas tomaram posição insuspeitáveis, duma impressionante agilidade de semáforas anunciando, silenciosas, a aproximação do inimigo.
João Sem Terra, sensibilizado pela riqueza da inventiva humana, expressa naquelas titulações esplendorosas que pelos séculos à fora desempenharam tantos varões, desacocorara-se!  A enunciação de cada uma, acrescentara um côvado à sua estatura e, quando a besta Joana chegou ao Condestável, ele mais parecia uma juçara que o tufão despalma de tão espinhado e mais aprumado!
Assim enorme sacudiu a imensa cabeleira, ergueu os braços potentes aos céus, num gesto de Prometeu e, depois de catar duas ou três constelações, trovejou sobre os ermos a voz eolítica que arrasou montanhas e encheu vales, ao gasto de Isaias, o profeta, rude a portentosa como a do Batista, o qua clamou no deserto, Todo o Apiajá estremeceu!
- Coronel! Chamarme-ás Coronel, Joana, chamarme-ás Coronel! Tudo mais, quando não recuso, dispenso. Nada mais que Coronel, nada menos que Coronel! Coronel João Sem Terra!
Coronel! Coronel! Coronel!…
Os ecos do sertão responderam, multiplicadamente, ao estentório berro. A patente, saída das memórias da Guarda Nacional, colava-se às ombreiras dos montes, brilhava no peito da terra áspera, confundindo peito e ombros de João gigante com a paisagem total das sertanias. Misturada ao luar brando, a palavra final estendia-se sobre os longes, como túnica sem costura. Homens o animais estremeceram de puro medo. Do oriente, magos vieram montados em jegues humílimos e, rolando nas mãos os chapéus de couro, sopraram turíbulos pendulares, exorcizando a caatinga com incenso a mirra. Comoceu-se a natureza. 0 córrego que dera nome àquelas paragens estancou, dividiu e açudou as suas águas, na expectativa da passagem do eleito, pronto para submergir os cabras do Cel. Bernardo que lhe viessem acaso aos calcanhares. Frutas verdoengas amadureceram de pressa, sazonando homenagens. Cascavéis perderam o veneno, vacas de boa manteiga esconderam o leite para as primícias do culto matinal. Como não houvesse àquela hora, sol a Josué, o quarto crescente realizou-se no plenilúnio, para que as potestades do céu não faltassem aos preitos da terra. Caboclas em flor prepararam-se para o privilégio nupcial. Corpos de jagunços mortos nas refregas com os macacos do governo ergueram-se das águas rasas, dessorando barro, respeitosamente perfilados, imóveis como espantalhos de roça am tarde sem vento. Os sinos de todas as igrejas a capelas repicaram, insistentes a alegres. Estrelas de Orion mandaram mensagens luminosas ao irmão que no Apiajá reproduzia as grandezas do universo ...
Foi um momento espantado, solto no tempo, solto no espaço!
Passada a comoção, submissos o animado e o inanimado, o vulto gigantesco de João Cem Terra, sob a força do sortilégio, começou a mirrar, na proporção em que se refazia, no silêncio noturno, a normalidade das coisas e o coronel!, coronel!, coronel!, do berro, deliqüescia na distância, perdendo vigor nas quebradas longínquas ...
Para Joana, muda de pavor, estava claro que aquilo só podia ser mesmo era obra do feitiço, daqueles seres etários que cirandavam no canavial.
Seu instinto, mais puxado a Sancho do que a Rocinante, logo reagiu, preocupado com as conseqüências daquele fordúncio:
Meu amo a senhor! Este grito foi uma imprudência, um desalinho, por São Jorge! Fujamos! Partamos rápido antes que os cabras da Vira-bosta desconfiem de que andamos em lidas guerreiras! Este barulhão deve ter sacudido a rode do Cel. Bernardo e temo que tenhamos posto a perder os artifícios do que nos valemos para passar a fronteira. Da qualquer forma desejo manifestar maus aplausos por sua corajosa decisão. Será um irritante paradoxo, nestas longitudes, chamar-se meu amo e senhor de Coronel, sendo Joao e sendo som terra! Na verdade, que poderá danar mais a Bernardo qua vê-lo, meu amo, na ilustre companhia, senhor, como ele, de baraço e cutelo, passando toda a autoridade da terra nas ruas de Galangópolis, que brando-lhe o monopólio de duzentos léguas de quadrado?! Que poderá mais enfezá-lo do que barrar-lhe o umbigo da arrogância, erigindo, nas suas barbas, uma outra castelania quo poderemos chamar Nova Roma, onde a caridade, a cooperação, a solidariedade, abrirão clareiras de luz no expandir de nossa pequena cristandade, impondo, enfim, justiça, compreensão, paz e amor?
E cheia de unção:
- Vade retro, Satanás, que encontraste pela frente homem varão, antes sem sinal, agora entre doze assinalado!
Disse e versejou trôpega, cantarolante, juvenil:
" Coronel João Sem Terra,
Oh! Que delícia de guerra!
Coronel João Bam Terra
Oh! Que delícia da guerra!"
Mas logo se reinvestiu de suas responsabilidades:
 Vamos, senhor, que se faz tarde. Muito receio comemorações antecipadas que, em regra, não são de bom agouro. Vamos! As circunstâncias aconselham a que priemiro vivamos e depois filosofemos. Deixamos os princípios para o???
João logo pulou na sola o ambos retomaram a estrada, na pressa de buscar o tempo perdido.
0 crescente declinava já mais para dourado.
Um canto da galo se levantou de escondidos quintais ignorados. As bruxas que iam à frente da expedição provocando rodamoinhos como os do Saci, em chão de sol quente, inquietaram-se. Canto do galo quer dizer madrugada próxima e tais seres, como se sabe, não se dão bem com a luz do sol, mesmo aquele anêmico lívido e cianótico que despachou o fantasma do pai de Hamlet do castelo da Dinamarca.
Conduzir a dupla até as terras prometidas das verdes esmeraldas ainda antes do amanhecer tropical não seria tarefa tão fácil. Daí que, depois da camuflagem em mesa redonda dentro do milharal, resolveram carregar na dose do sortilégio e da resolução à execução não houve perda da segundo. Desataram a cantar velhos estribilhos, dançaram em rodopio esvoaçante, casquilharam risos inconfundíveis e arremataram num coro que açulava João e Joana:
Andar, andar, pra frente andar!
Quem não quiser ir que deixe dançar.
Após essa preparação - coisas muito estranhas fazem as bruxas!
               Mimiaturizaram João e agigantaram Joana, de tal maneira que o primeiro se convertesse em carga leve, desimportante, e a segunda se habilitasse a vencer as distâncias com passos de sete léguas. Com a inteligente planificação mágica o cavaleiro audaz perdeu a bela figura, lutando em vão para manter a sua dignidade de chefe. Desabou do alto de suas prerrogativas de liderança agarrar~se como carrapicho à crina embaraçada de Joana. A decisão tinha importância transcendente. Dora em deante tudo estaria entregue a força dos músculos da besta. Ideal acalentado, sonho esmeraldino, desforra, alforria , o gozo esplêndido do podar laureado pala reta intenção de distribuir justiça, de promover o bem estar da futura comunidade que cresceria nas lides jurisdicionais da Nova Roma, tudo seria obra dos mágicos e da besta. E João foi ficando joão. Como Francisco virara Chico, João virava janjão. Sorte, ou azar, que não se dava conta disso e aceitava as circunstâncias como o fatal do contexto, o inafastável, o indispensável para o bem dos futuros impessoais com prazo incerto de data. Verdade, pensava em meio aos desencontros da dança de São Guido que o sacudia, que se destronava para servir à promessa do trono, mas tais contradições, certamente, seriam aparentes apenas, sacrilégio de suas dúvidas momentâneas. Era preciso crer a confiar em que tudo daria certo, em que a fronteira seria enfim, arrombada! Compreendia que o grande Projeto deveria realizar-se sem pieguices respeitosas à sua pessoa humana que pusessem em perigo a grande Meta, a terra, enfim, que o pé de Moisés não pisou!
A velocidade aumentava a cada segundo. 0 trote da besta estremecia o chão. Muito caminho ainda teria de ser engulido pelas patas Joaninas e, de longe, de ignorados terreiros escondidos, um galo bíblico cantou pela segunda vez …
Mas apesar das medidas tomadas pelo sortilégio o latifúndio do Cel. Bernardo esgotava as energias de Joana. Era um sumidouro de terra e mais terra e mais terra …


Não cansava. Joana se esforçava, esquentando os cascos naquelas lonjuras que  se esticavam impiedosamente. Suas narinas se abriam ao cheiro de mato orvalhado que anunciava a manhã próxima, uma leve brisa fresca que mais parecia vir da terra que dos aras. Consciente de que tudo dependia dela, tocada, a um tempo, pelo dever de fidelidade e pelo medo dos cabras de Vira-bosta, do trote passou ao galope.

A caboclada, despertada pelo barulho infernal, esconjurou
a mula sem cabaça que, àquela hora, certamente se recolhia das andanças noturnas, das maldades da assombração. Muito menino mijou na cama só de pavor.
             E a fronteira que não chegava?! Pastos mirrados, caatingas ressequidas, úmidos vales, currais, carnaubas e canaviais a rios secos e água podre e céu igual e céu igual e tudo pra trás, am alada velocidade ...
              Joana, gemeu:
            - Meu amo e senhor!  E a fronteira bernadina que não chega! Seguramente vou mais depressa que o cantor da estrada da Santos cortando curvas na contra-mão, como deve estar notando, mas os resultados ,pesa-me reconhecer, não são animadores. Dar-se-ia o caso de termos errado o caminho? Deverei penitenciar-me de tão grave quão fatal desgraça? Haveria tempo de regressar em busca de outros caminhos? Haverá, senhor, outros caminhos?
           João Sem Terra, naquela tropelia descabelada, não encontrava meios de refletir sobre  as sugestões e decidir as dúvidas de Joana.
Na verdade, aguentar-se sobro o lombo da besta, am tal situação, já era um êxito. 0 sertão lhe parecia imensamente maior visto ali de cima. 0 feudo bernardino inchara, estourando os horizontes. Por mais que corresse a besta Joana e mais longe olhasse João, não conseguiam alcançar-lhe os limites.
          Ora, com aquele furioso bater de pilão a estremecer serras não seria da estranhar se algo, em conseqüência, acontecesse. E aconteceu.
          Ergue-se do fundo da terra e do passado, os Conquistadores, já despertos pelos cantos da primeira partida. Vinham pela coerência porque aquela empreitada áleas a tinham por deles, sem duvida. Deles era a Terra assim com maiúscula, ela toda. João Sem Torra, conquistador de léguas por cima das sesmarias, positivamente, era dos seus! Pertencia à grei dos rebeldes anti-Tordesilhas, dos devoradores de distância, dos quebra limites, das inconformados com a fronteira ... Aqueles cânticos de jograis, como pensara a besta Joana, não só tapearam os cabras do Cel. Bernardo, como mexeram com os instintos possessivos das velhas coortes que, então, abalaram do planalto e da costa, solidárias no mutirão adoidado. Chegaram montadas em cavalos de fogo, ígneos animais resplandescentes, gibão de couro, chapéus da abas largas, agitando flâmulas com inscrições em acrílico roubado, na certa, de um polo qualquer de desenvolvimento que encontraram na passagem. e as palavras impressas respondiam, desafiantes a impetuosas, às duvidas de Joana e eram escritas em latim para guardarem relação -é possível- com a estranha noite medieval em que se desenrolavam aqueles fatos e diziam assim: “aut inveniam viam aut faciam!" Sim! Sim! Sim! Eis a tradição, nunca descumprida, de seus caminhares seiscentistas:  ou descobriam o caminho ou o faziam, eles próprios!
Nesta altura dos acontecimentos tudo era estímulo e refrigério para o cansaço de João e Joana. Ambos se agradaram muito daquele adjutório, apesar do susto que sofreram com tal punhado de Elias levantando
poeira das estrelas à sua frente. Animaram-se, mais rápido e elásticos, com os estandartes.
    Facões reluzentes coriscavam, cortando os ares nos punhos dos cavaleiras. “So-
mos os Cavaleiros da Justiça!”, bradavam com voz poderosa. A terra é do todos, é nossa, é de todos! Nós a pisamos toda, de Piratininga, da beira do Atlântico, as rampas andinas à encharcada Amazônia! Fomos nós os que pregaram seu corpo no continente tatuando nele os marcos multi-miliários da posse! Avante, João! Avante, Joana! Abaixo o pelourinho da Vira-bosta para nunca mais haver! Abaixo o Cel. Bernardo
Diziam a trovejavam seus  arcabuzes ã direita a à esquerda e exclamavam ameaçadoras:
- Que ninguém olhe para trás, senão se estrepa, como a mulher de Lot! Fogo e enxofre cairão sobre a terra, feita maldita pela corrupção e pelo desamor! A posse, a posse, a posse!
Joana, ainda que empolgada com tao brilhantes discursos , não se apercebia bem do sentido das palavras dos Cavaleiros da Justiça. Ficou meio vasqueira com aquela idéia de posse e posse, mas seu pensamento voava mais rápido ainda que a doida tropelia para as esmeraldas libertadoras, a realização do sonho do sou amo e senhor, o mesmo sonho que embalara na febre escaldante, na tremedeira da terça, quantos daqueles flamantes abantesmas. Procurou espantar minúcias inquietantes  e concentrar-se no êxito final da bandeira. Ah! que epílogo delirante antecipava! Assistir a magnífica cena do resgate de dívida na venda do Chico Santo, presenciar o gesto de João Sem Terra atirando na varanda da Casa d'Ávila punhados e punhados de pedras preciosas, quebrando-lhe os caixilhos com estilingadas de esmeraldas, ah! aquilo é que seria recompensa para tanta lida e tanto esforço! Aquilo sim, seria uma gesta! A casa d*Ávila esmagada, destruída sob montes de esmeraldas, um dilúvio Onírico, feito, enfim, realidade!
Acicatada por tais pensamentos a alucinante cavalgada varava espaços e mais espaços, rompendo chão pra-cima e chão pra baixo.
As bruxas se desdobravam num azáfama esbaforido. Ao longo da carreira realizavam seminários, encontros, conciliábulos freqüentes quando trocavam informações, reformulavam cálculos, montavam complicadas engenharias de fórmulas, deslocando, velozes, o tacho das beberragens de um estremo ao outro do sertão assombrado. Ao lado do Setestrelo penduraram um imenso cartaz eletrônico onde em pisca-piscas frenéticos, números, letras e símbolos herméticos expressavam, num explendor da racionalidade, as etapas vencidas, as léguas faltantes, a energia produzida pela besta, o consumo em besta-wats já empregados, azimutes, parâmetros, a prova dos nove dos acertos, a convicção na precisão do momento da ultrapassagem da fronteira bernardina, a triunfal entrada no País das Esmeraldas...
João-Janjão, grogue mas embevecido, permanecia na fé. Era preciso crer e isso Janjão fazia. Janjão acreditava! 0 fascínio dos números em delírio levava a força carismática daquilo que se explica, por si mesmo. Como eram lindos! Que beleza imprimiam àquelas fórmulas mais belas porque misteriosas, mais convincentes quanto menos inteligíveis! Ágeis e rápidos moviam-se no imenso painel como seres vivos num aquário. Era aquilo - Janjão não compreendia, mas sentia que era - que lhes emprestava o prestígio da verdade; aquela aparência de coisa viva, a mexer-se, a ancarapitar-se, a perfilar-se, a arrumar se, a ordenar se, a fazer-se e a se refazer, a se combinar, a se multiplicar, a se eliminar, a se dividir, a se somar, como faz a vida com os homens, com ele, com o Cel. Bernardo,com o sertão... Era isso! Parecia serem a vida, parecia que a continham e a explicavam. Parecia e era o bastante para ele, Janjão, e para todos os janjões do Apiajá.
Em meio as atribulações da maratona, aquele foi um glorioso momento de reflexão e dele Janjão emergiu cheio de orgulho por se reconhecer membro da Confraria Universal dos Números. Nela ela estava computado, era fator, ara variável. Era! Fazia-se imperioso, por isso, que demonstras se por sinais exteriores, a alegria respeitosa por tão grande graça recebida. Como não se pudesse por de joelhos no lombo galopante da besta ergueu os olhos humildes e tímidos para o painel eletrônico. Desaprumado em meio aos solavancos, tentou uma continência, conseguiu o sinal da cruz e, após alguma indecisão, arrematou muito sincrético:
- Saravá, Macunaima!
Epa, epa! Esta última palavra provocou um reboliço na testa da coluna. A vanguarda empolvilhou-se com o súbito surgimento de algumas dúzias de caraibas, desentocados de suas urnas funerárias am virtude de sua familiaridade com figuras como aquelas que povoaram a mente dos primitivos ocupantes da terra.
Joana, tendo ouvido a saudação compreendeu que aquilo fora nova imprudência praticada pelo sub-desenvolvimento mental de Janjão. Temeu pela harmonia das forças conjugadas na empreitada. Afinal, identificar aquela super-demônio doador-gozador e o painel eletrônico da bruxaria nórdica, altíssima expressão da beneficência racional a balsamizar de luz as trevas da analfabetolândia sertaneja, seria permitir-se interpretar que Janjão temeria existir um lado mau na coisa e isso não era compatível com a fé na dogmática numerológica  ali gloriosamente reinante. Ou, o que representava perigo imediato, imaginar que aquilo não tinha seriedade, era obra do heroi-demônio só brincando de fazer de conta com os abestados daquelas brenhas! Além do mais temia Joana que se estabelecesse alguma desavença entre os primitivos e os bandeirantes arcabuzeiros por questões da precedência no que toca à posse, tão enfaticamente invocada por aqueles.
Mas, não. Os seus temores, no momento, eram infundados. Os caraibas deixaram as divergências nas urnas (funerárias), esqueceram a Confederação e muito liberais, muito ecumênicos, não puseram tempo em badalar campanários repicando em louvor do mutirão, muito da acordo com as alquimias nórdicas, muito sensíveis ao magnetismo de suas fórmulas, muito aderentes aos novos mistérios dos novos pajés. Dispostos à ajuda avalizaram a bandeira prometendo, como faziam em recuadas luas, a idade do ouro que, em chegando, faria as coisas trabalharem por si para a felicidade da brugada.
  • Vamos Joana! Avante! Avante! Do outro lado da fronteira as enxadas por si hão de cavar e os "pânicos" ir às roças e trazer os mantimentos, tal como relatou nosso Irmão Cardin na gesta da terra e das gentes. Sera o paraíso dos homens, irmãos, pois que será o governo das coisas, muito mais fácil que o governo daqueles, por motivos tão óbvios que dispensam explicação. Só as coisas - as coisas e os assuntos - contarão! Tudo se organizará por si mesmo, tudo maravilhosamente ordenado ao bem comum. E, como no Reino das Coisas as leis do Reino são imutáveis, inalteráveis, irrevogáveis, inderreogáveis, inabrogáveis, á se dolar clareza que seus efeitos, também o são, uma vez que os fins participam da natureza dos meios. 0ra, sendo o fim último das leis desse Reino, o bem estar de todos é de maior clareza ainda que o bem estar-sinónimo de felicidade no anacrônico linguajar dos homens - será necessariamente, imutável, inalterável, irrevogável, inderrogável e inabrogável efeito das leis do Reino das Coisas. Donde se conclui que todos serão felizes, ainda que, por absurdo, não o queiram. Eis aí a maravilha há tanto procurada: a felicidade compulsória! Contra-prestação devida pelos homens, e, executivamente cobrável, ao governo das Coisas, pelos serviços prestados! Ao longo do tempo tão grands será a felicidade, tão íntimo o relacionamento entre as coisas a os homens que não mais se distinguirão, as coisas humanizadas e os homens coisificados! Por termos anunciado e prometido estas bem-aventuranças aos nossos povos, nosso irmão Cardin - antes citado  - nos fez grave injustiça ao nos apodar de índias de ruim vida, isto é, sujeitos de mau caráter, vigaristas, nos dizeres de hoje. Que Tupã o tenha, irmão, qua não obramos vinganças! Confiais, pois! Consultamos o colar de Ifá que penduramos no Setestrelo ao lado do Painel e as nozes nos revelaram que a abundância, a paz, o amor, estão quase-quase ao alcance de vossas mãos! Mais um pouco e o sonho esmeraldino gotejará das estrelas como orvalho verde, maná rebrotado cada manhã até que a terra prometida desabroche em leite e mal e da boca-de-fome dos emigrantes de Portinari, escorram as delícias chupadas nos seios de Canaã! 

  • Trouxemos os Muiraquitãs de jade, verde-rã, arrancadps às entranhas lodosas da terra amazônica , polidos por femininas maos enluaradas, nesta noite mesma, para que realizeis o sonho da chegada!
As bruxas, ouvindo o discurso e o anúncio, avaliaram, num computador de bolso da última geração, a validez, ou não, das falas das caraibas e a utilidade eventual dos elementos não especificamente racionais dos aportes trazidos por eles, particularmente aquela história do Muiraquitã, por isso que, quanto ao resto, estavam todos de pleno acordo, como logo depois se viu.
Decidiram, por fim, que os Muiraquitãs não prejudicavam o planejamento da expedição; talvez até ajudassem por que ajudavam a alimentar, pelo menos, duas virtudes teologais de interesse, porque úteis, na conjuntura: a fé e a esperança!
Daí que coacharam num coro de batráquios:
- Está convocado o Conselho de Newton! Nosso padrinho São Simão mandou publicar editais pra chamar as capacidades com urgência urgentíssima. Que venham, pois, todos os Master, os PHD disponíveis, de abaixo e de acima da Linha do Equador! Vai-se formar a grande Pirâmide das Competências a bem mais de quarenta séculos de ineficácia dos governos dos homens a contemplarão, lá de baixo, humildes, prostrados, cheios de compunção! Competência para a eficácia, eis o que tornará evidentes as conspícuas tolices com que distraíram seus ócios, badalados cavalheiros helenistas, uns pagãos, outros elevados às glórias dos altares, gastadores de tempo e esforço com inúteis especulações sabre arte da governar povos a coisas semelhantes. De
nossas mãos surgira a Cidade das Coisas, bela, espontânea, ordeira, sendo o que é porque não poderá deixar de ser, guardada e maravilhosamente ordenada pelas leis verdadeiramente libertadoras que não podendo ser mudadas, porque perfeitas, dispensam a todos os esforços de aperfeiçoá-las, donde a Paz, a eterna paz das Coisas que os homens perturbam com a périda usança de suas rebeldias!
                      Joao Sem Terra arfava de exaustão e ânimo aceso com aquele auxilio luminoso, bravo e inteligente. Parecia-lhe já tão remoto o momento em que determinara a Joana, aos berros, lhe chamasse Coronel; parecia-lhe, agora, o título, tão murcho e
mesquinho diante daquela verborragia de comício da capital, daqueles títulos que soavam aos seus ouvidos com tanta imponência, convocados pelas bruxas; daqueles pomposos arrazoados em que se emaranhavam os seus miolos, quo considerou de seu único dever aguentar-se. Aguentar-se, desse no que desse! Se já não era de muito pensar melhor agora que tinha quem por ele pensasse. É verdade, deveria confessar, que Joana vinha, em parte, fazendo isso por ele naquela empreitada, mas o raciocínio da besta era acessível às suas insuficiências e, exposto na oportunidade em qua sobre ale o sortilégio trabalhava em sentido vertical, tornara-se compreensivo. Mas agora, quando estava reduzido a um anão de circo no picadeiro monstruoso do horizonte circular do feudo Bernardino, melhor mesmo era deixar a razão para aqueles discruseiros calculadores e ficar com a fé que não lhe custava nem esforço nem pataca, com o que provada estava o acerto das decisões das bruxas permitindo recebessem os Muiráquitãs presenteados pelos pagés.
Na verdade não mais era chefe nem chefiado. Ia no rolo, embrulhado ou desembrulhado pela direita e pelo avesso mas certo da vitória final da Santa Causa.
A besta Joana, já meio estropiada, galopava puxada pelas montarias dos Cavaleiros da Justiça. Um suor espumoso abundava, sempre mais, em
seus flancos am fontes copiosas...
Então aconteceu outro acontecimento que seria espantoso se fosse o primeiro daquela série de espantos acontecidos a João e Joana.
É que, descendo em filetes que engrossavam em contacto com a terra, o suor da testa avoluma-se em córregos a logo em rios e em lagos e em mares que cresciam e cresciam e inundavam tudo! Eram séculos de suor que porejaram das carnes de milhões e agora minavam do couro da besta na desabalada corrida para as esmeraldas, na disparada confusa para a fronteira. Era o vômito dos eitos dos das senzalas e dos troncos e dos porões de navios condenados e das enxadas e das glebas a das derrubadas e dos longos esforços mordidos de sol, crestrados de vento...
0 suor jorrando em catadupas ruidosas nos socavões das serras, remontava sobre campos e casas e gados e paióis mergulhando homens e coisas no silencio espantado dos afogados... 0 Painel Eletrônico pendurado no Setestrelo pipocava dados computados, planejando a corrida contra o tempo, contra as imprevistos, contra aquele suor danado...
*
Aí, pareceu a João que vozes estranhas encheram os ares insistentes e interrogativas, como as que povoaram o primeiro jardim à brisa vespertina, depois da queda. Elas invocavam Bernardo, àquela hora bem refestelando na placidez da rede, na segurança dos muros da Vira-bosta; tão altos que a maré de suor não lhe alcançava as seteiras, esgotando-se pelo fosso...
               - Bernardo! Bernardo! Onde te escondes Bernardo? 0 suor da besta Joana da terra clama a mim! Onde está tua irmã em Francisco, o filho de Bernardone, nascido na velha Assis? Serás maldito, Bernardo, porque o suor da tua irmã em Francisco foi tanto e tanto por obra da tua mão que a boca da terra não foi grande bastante para recebê-lo!
          Pareceu, também, a João , que ao ver o mundareu submerso ameaçando a sede da Vira-bosta o coronel respondia com voz apagada e mansa; A minha iniqüidade é muito grande para que eu mereça perdão. Eis que tu hoje me expulsas desta terra e eu me esconderei da tua face e serei vagabundo e fugitivo na terra; portanto, todo que me achar me matará.
Pareceu a João. Mas tanto que parecera, tanta logo achou que
se enganara, que na verdade, ninguém falara e ninguém ouvira...
A aurora, entretanto, anunciava-se em indecisas poeiras de luz distante. Sobre as vagas do suor lantejoulavam os primeiros refluxos sanguíneos...
As pernas de João iam-se enfraquecendo pouco a pouco e tremiam as imensas patas de Joana. João, desengonçado, desarticuladim moído, notou que o ritmo do galope diminuía.
Que se passa, Joana? Já não vejo os Cavaleiros! Onde estão os Cavaleiros, Joana? Força, Joana! À fronteira Joana! Ao País das Esmeraldas, à Baratária. Não desisto da Baratária, Joana! Força Joana! Olha que por aí vem os cabras da Vira—Bosta! E os caraibas com seu colar de Ifá? E o Conselho de Newton? E a tal pirâmide de competências, onde estão, Joana?
Joana levantou o focinho cheirando o ar.
- Não sei meu dono, não sei! Alguma coisa falhou, desafortunadamente. Este solão parece que chega mais cedo hoje. já não vejo o painel do Setestrelo. Jà não vejo o colar de Ifá! Se duvidar o Curupira safado andou a desencaminhar as bruxas e com elas o Conselho. Va ver, vá ver, Macunaíma fez o resto. Meu dono, foste imprudente naquela saudação bem o pressentiu o meu instinto... Alem disso esse suor espantoso que desidratou a história enfraquece-me as forças, dificulta-me a marcha... Bem que ouvi o noitibó, esse Cassandra do sertão, a tecer oráculos malditos para com eles cobrir os
despojos da nossa Bandeira! Mas não lhe demos ouvidos, no ardor do nosso entusiasmo... E agora? Ah! esse suor terrível, esse suor terrível Um lamento chora longo a rolar na longa voz do vento.
Joana continuou:
Nossa antes venturosa  aventura, meu dono, ameaça transformar-se na desventura cruel de um pau-de-sebo... Se tal acontecer porém - não o permita a Calunga Iamanjá - proponho que terminada essa heróica mixórdia, entronizemos, à frente do sua unidade habitacional na Vira-bosta, um pau-de-sebo como símbolo de nossa mal trapilhação esperançosa. Recrutaremos por ali mesmo algumas caboclas que sirvam do sacerdotizas encarregadas do culto a essa amarga ironia lúdica, coisa da Cosme e Damião posta no espírito docemente infantil do nossa gente, gozadora réplica nacional do Sísifo helênico a empurrar aquele pedregulhão pelas encostas do inferno. Contudo, para que tais memórias não desanimem as gerações futuras penduráremos uma nota de um cruzeiro no seu topo, incentivo a lembrar que sempre será recomendável a tentativa, apesar das dificuldades da escalada; E, afinal, que tudo vale a pena se a alma não ó pequena. Mais para ouvir-se do que pra ser ouvida, pensou alto:
           - Essa quantia estar odiviamente sujeita à correção monetária a fim de que seja mantido o nível de interesse...
Enquanto assim dialogavam João e Joana os abantesmas fogosos a seus corcéis diluiam-se, lentamente, na atmosfera. As feiticeiras expatriadas afligiam-soe no temor da luz, diluíam—se também. Realizaram, às pressas, um último encontro, já meio desprotegidas de suas brumas e resolveram, em sigilo, fixar os Editais de Convocação das Competências pelas cercas de todos os caminhos e dar no pé ...
0 sortilégio perdia força espantado pelo calor do trópido. O Painel eletrônico começou a embaralhar números, símbolos, fórmulas, parâmetros, azimutes...
Joana invocava:
Valha-me São Jorge! Valha—me os Encantados! Valha-me São Cristóvão! Valha-me São Sebastião, inda de espero, inda te espero, Santo ou Rei...
João-Janjão repetia:
 -Inda te espero, inda te espero, Santo ou Rei…
Caraibas e bandeirantes, evanescentes, espalhavam pelo ar,debilmente, a esperança joanina:
- Inda te áspero, inda te esporo, Santo ou Rei…
Cansaço total tetanizava os músculos da basta. Trôpega e arquejante Joana ao desmanchava na marcha agora desmembrada e bêbada. João misturava projetos a lembranças, futuro e passado, já sam os efeitos da bruxaria nórdica, sofrido e desmantelado, recuperava seus tamanhos, confuso na confusão das horas intermediárias, enquanto a besta, depositária de todas as esperanças na corrida às esmeraldas, retornava, frustrada e bem qua quadrúpede, as trevas de sua irracionalidade.
Um canto de galo pela terceira vez se fez ouvir, vindo de escondidos quintais ignorados, porém bíblicos.
E eles voltaram a ficar sós, João e Joana, renegados sumidos no silêncio que restou, rebatendo, passo a passo, os velhos caminhos íntimos.
0 sertão reamanhecia.
E ficou socó como ele só.
Do graveto dum galho seco os Sem-fim soltou seu canto reticente e triste, voz da advertência das lonjuras da terra…
Sem fim…
Sem fim…
Sem fim…
À aquela horinha, Padre Zeca, vocação do lugar, orgulho de Galangópolis lia, entre pios de andorinhas igrejeiras e a embevecida e salvadora ignorância de umas poucas fidelidades paroquianas, santas fidelidades absolvidíssimas,  vultos de longos vestidos a sapatos cambaios que manquitolaram madrugadores na refreascada tristeza do arraial, a Segunda Leitura da missa da manhã.
Padre Zeca - Leitura da Carta de São Paulo aos Tesalonicenses   "Irmãos! Quanto ao tempo o ao modo da vinda do Senhor, não há mais necessidade de vos escrever, pois sabeis muito bem que o dia do Senhor virá sem ser anunciado, como um ladrão da noite ..."
Na fazenda Vira-bosta, Bernardo, coronel, também madrugador, senhor
de baraço a cutelo daquela castelenia, apareceu, anunciando—se ruidosamente, pelo pigarro de fumo, no Terreiro do Paço.
Padre Zeca (na capela) prosseguia: " …Quando disserem:
Paz e segurança, exatamente então é que se abaterá, subitamente, sobre eles,
a catástrofe …”
Bernardo (na Vira-bosta) caminhava do mãos nas costas, estufando o peito com o ar da manhã, bocejando forte, com liberdade da dono, tirando do corpo o bodum noturno da alcova e conseqüências.
Padre Zeca (na capela): " Vos todos já sois filhos da luz e filhos do dia. Se não somos filhos da noite nem das travas não durmamos, pois, como os outros, mas vigiemos a temperança."
João Som Terra (na Vira-bosta) caboclo do Apiajá, morador em terras do Cel. Bernardo, nas proximidades da venda do Chico Santo, acordava enganchando na besta Joana que cochilava paciente ao lado do alpendre da Casa Grande.
Os últimos vapores da "Toma o Tombo" enevoavam a mente e a visão do frangueiro. Mas, no que ouviu o pigarro do senhor, lesto escorregou da sela, matreiro a chinchar da besta ...
Padre Zeca (na capela) já no Evangelho, ia adiante: "Sede puro como as pombas e espertos como as serpentes."
Cel. Bernardo (na Vira-bosta), avistando João, aproximou-se falando a modo de condescendente cumprimento:
- Saino cedo, Seu João?
-  É verdade, Seu Coroné. Hoje tem fêra no Apiajá ... Vô levá
uns frango, sim siô. É.
Quando o coronel já ia meio longinho Joao esguelhou uma o olhadela por baixo da barriga da Joana pra cabrada espelhada por ali. Vendo que ninguém lhe prestava atenção, desconfiado e duvidoso, deu uma volta am torno da besta e, depois de ficar certo da qua a cauda do quadrúpede estava bam presa no devido lugar, resmungou pensativo:
- Esconjuro! Pelo Signo Salomão! Milhó vendê essa besta que num quero increnca pro meu lado ...
Cansadão, sentou-se sob o pé de cajá-manga, picando um fuminho de rolo, meditando aquela noite esquisita… A fumaça, daí a pouco, azulava sobre sua cabeça, subindo em rodelas coleantes que se desfaziam entre as folhas feitas de ouro pelo outono, pois era março, ao findar das chuvas •..
Germinava -lhe no espírito a ideia de aumentar o preço dos
frangos.